Justiça



Justiça


Há um arco de corda à saída do Tribunal

Com um estrado de madeira medieval

Escadas de tábuas soltas

E ferrugentos pregos salientes

Há um caminho de pedras ásperas

Manchado de sangue dos pés descalços

E uma árvore para onde se atiram os sapatos

Como enfeites de um pinheiro de Natal

É alta e de tronco escuro quadrangular

Costuma ser guardada por um homem respeitado

A quem todos se dirigem como se fosse Deus

É ele quem dá a autorização

Para que aos ramos sejam lançados os sapatos

Também é ele quem profere as sentenças

Aos outros que pagam a presença do carrasco

Porque à saída do Tribunal há esse caminho

Branco e fatal como a ilusão

É a cegueira do Homem, não a da estátua

Os pratos da balança pesam diferente

Um é sangue e o outro é ouro

E a corda balouça no estrado de madeira

Esperando os inocentes descalços

Que crentes largaram a protecção

Esperança cumprida é esperança morta

O alçapão abre-se e o arco da corda é vermelho

Porque é dessa cor que se pinta a justiça



Raquel Martinez Neves

20-Mai-10

Sangue Azul


Sangue Azul


Abraça o meu coração

É de sangue azul

Real fonte de ópio

Berço de todo o despeito

Que mãos avaras o querem

E o tentam quebrar

É só teu, juro, só teu

Protege-o com a tua graça

E áspera masculinidade

Bebe, bebe de mim

Combate forte os infiéis

Longe o tempo que era deles

Longe as horas de meretriz

Veneno para só um corpo

Escravo e patrono pelo chão

Correntes de ouro frio

Carrega-me nos teus braços

Sê aquele das histórias

Criança em cavalo de pau

Olha-me para lá da sujidade

Que são tecidos de luxo

Bordados a preconceito

Vaso fértil de terra seca

Brotam linhas de suor

Tremem-me as mãos neles

Só foram firmes em ti

Promessa de leito de palha

Mentira de seda e cetim

Dinastia de condenação

Prata manchada de impureza

Paredes testemunhas de dor

E o teu olhar impotente no meu

Ergue os braços para mim

Recebe o que foi de outros

Nojo de corpo rasgado

Mente possessa de cega

Lábios insanos de usados

Ansiando pela tua boca limpa

Pela tua prisão natural

E a liberdade de ser tua

Sem rituais e subjugações

Entrega doce e consensual

Que mais tem de divino

O teu olhar é esperança

Sê-a hoje para mim

Humilde alma vergada

Mas grande de fé e paixão

Perdoa a minha vergonha

Cura as feridas a beijos

Sela este pacto entre nós

Rebeldes de verdade e orgulho

Amantes em quente silêncio

Que se diz eu ser de todos

Jamais digna de ti

Reles diplomacia hipócrita

Que em segredo sou só tua

Abraça o meu coração

É de sangue azul

Como azul é o céu e não o ouro



Raquel Martinez Neves

Inspirado no (futuro) livro "Solstício"

17-Mai-10

Lucidez


Lucidez


O mundo está em rota de colisão

Eu sei. Tu não.

Os nossos beijos já não sabem igual

Eu sei. Tu finges que não.

As paredes tremem mas a cama não

Não é discussão dos vizinhos do lado

É a dos vizinhos de quarto

Somos estranhos um para o outro

Eu admito. Tu não.

As beatas acumulam-se no cinzeiro

As garrafas rolam pelo chão

Eu vejo. Tu não.

A tua pele é áspera na minha

Já não cheira como cheirava antes

O perfume está velho e enjoativo

Eu sinto. Tu não.

A beleza de nós é fotografia amarela

Nódoa em toalha branca

Cinzeiro que já não dá lume

Desculpas para ficar à varanda.

Tu ficas. Eu não.

O teu odor é álcool e tabaco.

Tu sabes. Eu finjo que não.

Há um buraco frio no lençóis

Vala que separa os nossos corpos

Não há atracão, só perdição

Lá me encontras de veneno no corpo

Eu aceito. Porque não?

Sentir um pouco do tempo de Sol

Quando chove e há fugas

Em todos os sentidos da palavra

Eu percebo. Tu não.

Ainda bem que somos só nós dois

Nunca quis que fossemos só nós dois

Mas tu nem queres que sejamos dois

Tu mentes. Eu não.

A mesa está suja e posta

Não há comida nos pratos rachados

Mas vinho nos copos baços

Ofereces-me e finjo que bebo

Tu esqueces. Eu não.

Recebo-te na dor da sobriedade

Não tens maior ou menor encanto

És necessidade, não prazer

És pobre luxúria inconsciente

Morte minha, consciente

Mas eu vivo. Tu não.

Frustrado na tentativa de te odiar

Porque ainda te amo. E tu não.



Raquel Martinez Neves

16-Mai-10

Memória


Memória


Sei de cor a tua história

De trás para a frente as tuas palavras

De olhos fechados os traços do teu rosto

Sei-te como nunca me soube

Conheço-te melhor que a mim próprio

Quando a noite cai, sei como dormes

A posição exacta do teu corpo

Sei a última coisa em que pensas

E até aquilo com que sonhas

Não desconheço uma ilusão da tua mente

Uma característica da tua personalidade

Um centímetro da tua sublime pele

Olhei-te como não me posso olhar

Admiro-te como não me posso admirar

Amo-te como não me posso amar

Vivo deambulando nas tuas memórias

Quando queria pegar-te a mão e dançar

Quando te queria quente na minha cama

Recordo o mais ínfimo pormenor de ti

Sei o perfume natural dos teus cabelos

Sei o toque sedoso dos teus dedos

Sei o sabor doce dos teus beijos

E também o sal das tuas lágrimas

Oiço no silêncio o som gracioso do teu riso

Não me esqueço dessa luz quando sorrias

Guardo no peito um tesouro teu

Entre a saudade, te sei bela e única

Entre a dor, és pura e minha

De criança a mulher conheci-te

Vi com estes olhos o milagre

O sonho e também o pesadelo

Jamais permiti que sujasse a tua imagem

Jamais te vi frágil e de luto

Jamais mudaste para mim

Alma luminosa, forte e corajosa

Rosa delicada e gentil

Eternamente dona deste coração

Ter-te e não saber

Não te ter e saber...


E esta noite, quando me deitar só

Estarás em memórias a meu lado

Envolverei o teu corpo nos meus braços

E beijarei apaixonado os teus lábios

Dir-me-ás ao ouvido “Boa noite”

E fecharás os teus olhos azuis

Mas eu não me lembrarei

Enquanto sereno adormeço a teu lado

Que já se fecharam para sempre



Kevin Dawner



Raquel Martinez Neves

Destinos

1-Maio-2010

Resistência


Resistência


Não, não, não

Bandeira hasteada no preconceito

Receio calado na multidão

Orgulho de espírito ferido

Voz mole na chuva de Verão

Não, não, não

Delírios de um murmúrio mudo

Sentido de alma incerta

Rasgos de lucidez mórbida

Grito trémulo na minha mão

Não, não, não

Cinza pálido de memórias

Ganância iluminada de alumínio

Risos loucos de sobriedade

Crença débil no teu coração

Não, não, não

E cai a noite, negra e branca

Choram os sós e os perdidos

Adormecem os que não sentem

Sôfrega e mortal solidão

Não, não, não

Rosas pisadas no caminho

Fitas de seda sujas de sangue

Lágrimas quentes ao vento

Abraço frio de consolação

Não, não, não

Animal ferido na sombra

Terror em olhos cegos

A tua consciência na minha

Dançando juntas esta canção

Não, não, não

Boca seca vazia de beijos

Estrada ondulante sem fim

Trilho inútil de pedras fatais

Máscara despida caída no chão

Não, não, não



Raquel Martinez Neves

30-Abr-10