De longe ao perto

De longe ao perto



Abraça-me como quando eu era criança
E não tinha medo de falar contigo
Quando não era difícil estar próximo
Quando os pedidos não eram recusados
À segunda frase argumentativa
E o silêncio não se opunha à discussão
Sorri uma vez que seja para mim
Não me ponhas em constante julgamento
Como se já não fosse boa para ti
Não chames de dever às minhas vitórias
Mostra-me apenas um pouco de orgulho
Jamais serei tudo o que não foste
Respeita o caminho que escolhi
Diz que é suficiente, não peças mais
Perde algum tempo a sério comigo
Ouve com paciência, dá-me atenção
Vem falar comigo, pergunta por mim
Olha para mim enquanto ainda estou aqui
Não culpes a ausência, desfruta a presença
Demonstra-me que gostas de mim
Como quando eu era criança
Mas compreende também que cresci
E que sou muito parecida contigo
Dá-me um beijo na testa, Pai
Não me lembro da última vez
Que me deste um beijo no rosto, Pai
Tenho saudades tuas.


Raquel Martinez Neves
26-Ago-11

Promessa


Promessa


As horas são de madeira

E os minutos de papel

O tempo rasga-se assim

Entre os dias de uma vida

Como relógio de corda

E o futuro faz-se presente

E o passado faz-se lixo

Ou memórias eternas

De uma noite de amor

Ou dez minutos de magia

Contigo nos meus braços

Porque fugir é pecado

Vamos enfrentar o alarme

Que os fins não se adiam

Tal como não se adia a vida

E amanhã é outro dia

Como outro dia foi hoje

E se fizermos tudo errado

A hora certa chegará

A expiação é um direito

Como a espera é um dever

E a esperança pertence-te

Como o tempo jamais o fará

Porque nos foge das mãos

Tal cronómetro incansável

Que corre rumo ao vazio

Construindo sobre o nada

O todo que forma a vida

Até que o tempo se esgota

E o eterno momento afinal

Coube em poucos segundos

Quando o lento se faz rápido

E tudo aquilo que nos sobra

São insuficientes recordações

De um destino promissor


Raquel Martinez Neves

19-Ago-11


Ruína


Ruína


Rasga-me as entranhas

E dá-las a comer ao teu orgulho

Arranca-me o coração pelo peito

E talvez então possas comprovar

Que tem o teu nome escrito nele

Bebe as minhas memórias

E vomita-as como o pecado que são

Insulta-me fria e cruelmente

Atira-me ao chão

Com a força das tuas palavras

Que estas lágrimas não te parem

Que esta dor não te intimide

Apaga somente o teu sofrimento

E, amor, talvez então

Consigas espaço para o perdão



Raquel Martinez Neves

19-Jul-11


(Des)consolação


(Des)consolação



Fecha a porta à chave

Enterra o rosto nas almofadas

Pensa em mim

Sente as memórias na pele

E encontra a saudade

Conhece a distância

Que choram os teus olhos

Não penses em mim

Ouve a minha voz

Vê de novo as fotografias

Sorri mais um vez

O tempo não é inimigo

Pensa em mim

Despe-te lentamente

Imagina as minhas mãos

Suave desejo ardente

Não te quebres à minha frente

Não penses em mim

Limpa essas tuas lágrimas

Cobre-te com o lençol

Adormece comigo e sonha

Em fazer amor ao pôr-do-sol

Pensa em mim

Jamais estarás só

Vivo no teu coração

Deixa fluir as horas, os dias

Há mais no mundo, paixão

Não penses em mim

Em breve estarás aqui

Amanhã estarei ai

Olha-me apenas esta noite

Sabes que te pertenço

Pensa em mim

Inspira o meu cheiro em ti

Abraça-te com força

O fantasma da minha boca

Ainda te beija a face

Não penses em mim

Recorda as promessas

Cada momento de magia

O encaixe corporal perfeito

E os meus lábios nos teus

Pensa em mim

Que esta noite, amor,

Eu também penso em ti


Raquel Martinez Neves

19-Jul-11


Relógio


Relógio


Sinto a inspiração descer profusamente pelo meu ventre

É quente e doce nestas dez últimas horas de espera

O relógio sempre foi meu inimigo

E enquanto as linhas crescem de forma análoga a um poema

A vida gasta-se e tu ainda não estás aqui

Na irregularidade dos sorrisos e das lágrimas

Escrevemos a nossa história

E a poesia não é nada senão palavras de saudade e amor

Escritas sem a ordem da literatura mas com a do coração

Sem rima porque o amor não rima

Sem métrica porque o amor não se mede

Sem estrofes porque o amor não se divide

E sinto a inspiração a desfazer-se lentamente entre os dedos

É vã e ilógica nestes seiscentos últimos minutos de espera

O relógio sempre foi meu inimigo

E enquanto as linhas escasseiam de forma análoga ao tempo

A poesia morre e tu ainda não estás aqui.


Raquel Martinez Neves

14-Jun-11


Outra Noite


Outra Noite



Foste cavaleiro por uma noite

Pastor da minha alma pela madrugada

Rezaste pelo meu coração

E guiaste-me com sorrisos pelas trevas

Foste anjo, foste pecado

Silêncio arquejante sobre o meu peito

Sorte sóbria e amarga

Nesses lábios donos do teu mundo

Foste sonho de verão

Embalaste a minha solidão nesses braços

Oh, cavaleiro!

Deste à vida o prazer de a viver

E neste cântico meu

Pobre corpo vaso de lágrimas secas

Foste meu, só meu

E a inocência lavada em sangue morreu

Foste o princípio da noite

E o final adiado do sol da manhã

Foste a primavera

Cândida paixão no berço da nova era

Regressa logo

Sem o peso da armadura e sem armas

Vulnerável como eu

Neste reino de castelos de lençóis

Onde a loucura

Meu amor, onde a nossa loucura

Se fecha e se esquece

Deixando de fora o resto do mundo

E tu, cavaleiro

És tão somente um nobre homem

E eu, mulher

Não peço nada mais do que isso

Outra noite.


Raquel Martinez Neves

28-Abril-2011


TU


TU

Preciso de uma palavra
Forte como os teus braços em meu redor
Preciso de prolongar o momento
Dar um nome ao teu sorriso
Compreender realmente o meu
Preciso de certezas
Firmes como o teu corpo contra o meu
Preciso de conhecer a tua história
E de te ensinar a minha
Preciso de te querer ainda mais
Para não ceder facilmente à tentação
A noite avizinha-se e hoje não és tu
Preciso de saber para não o fazer
Calar este dilema interior
Cuja única real saída és tu
Porque és mais que carne e prazer
E somos apenas dois numa cama
Preciso de torná-lo real
Faz bater mais depressa o meu coração
Diz que tens tudo a ver com a minha vida
Não me deixes agir como uma puta
E fá-lo sem saber onde vou dormir esta noite
Preciso de uma palavra
Que não se pode escrever com dois nomes
TU.

Raquel Martinez Neves
3-Abril-11

O rasto da tua luxúria na minha pele


O rasto da tua luxúria na minha pele


A tua memória é um fantasma que me assombra

Um desejo insaciado que ainda me acompanha

Como uma promessa que sei que não vais cumprir.

O teu cheiro permanece ténue na minha roupa

Mas já mal recordo o sabor da tua boca na minha.

Leve consolo de te ter sabido junto ao meu corpo

Esperança frígida alimentada pela cálida atracção.

Uma noite trancada na caixa das horas secretas

Adeus, coração.


Raquel Martinez Neves

25-Mar-11

Epifania II


Epifania II


Sente-te possuída pelo aroma quente da poesia

Veneno ácido que corrói o sistema emocional

Numa corrente corrompida de realismo ilusório

Vertido no berço casto de uma mente virgem.

Deixa-te afogar pelas palavras da incompreensão

O grito sufocante de uma revolta indolor e incolor

A incerteza do ar gasto e sujo que respiramos.

A vida é um não à espera de um sim, simples assim

Como afirmar que o céu é azul e as nuvens brancas

Encarnadas as entranhas e o sangue por derramar

Não sei o que mais desejar, senão o fumo da morte

Entranhada na vida como memória esquecida

Porque o tempo a fará constantemente voltar.

Convém sempre saber que se diz o que aqui se lê

E o sentido não importa aos sentidos mas à razão

Somente que não é ela que põe as mãos no mundo

E sente a textura salgada das lágrimas e da dor

E a dura suavidade fina e frágil da fome e da sede.

A história é deixada para que outros a contem

As questões sempre pairam sem resposta no ar

O contentamento é rápido de obter mas efémero

E eternas são as dúvidas tão velhas como a vida

A presença fantasmagórica das miragens do real

Fundidas nas realidades alternativas do ser

Tão privadas e secretas, abstractas e concretas

Como a verdadeira sabedoria sobre todos nós.


Raquel Martinez Neves

22-Fev-11