Poema


Poema

Riscos d’alma
Letras
Olhares d’água
Lágrimas
Sorrisos de gelo
Os teus

Poema, algo que te faz lembrar
O tempo das frases sem vírgulas
O dualismo sem dois pontos
Liberdade das não-regras
Traço fluído da caneta
Sem pontos, sem paragens
Respiração que não pausa
Porque pausa é morte

Poema
É para ser escrito à mão
Sem o traço encarnado
Correcção do computador
Poesia
Não ortografia

A frase mais longa que puder escrever
Ou a mais
Curta
A ler

Que entrem figuras de estilo
Mas sem grandes denominações
Quem escreve um poema
Põe pedaços de coração
Nada de métrica
Que valha à paixão

Rimas baratas
Amor e dor
Melhor antítese
Que sim e não

Escrever o que se sente
Gritar as palavras
Ou dá-las como beijos às folhas
Repeti-las no final
Como encantada melodia
Cadência da tua respiração
Sem fim, sem pontuação
Ritmo do teu coração
Irregular, influenciável
Vulnerável
Compasso da tua vida, marca-o tuas palavras
Com um sopro rápido, feroz
Ou com um suspiro lento, meigo
Como poesia, as tuas próprias regras
Como a vida, um poema

Raquel Neves

Uma Família de Luto


Uma Família de Luto

A casa está cheia
As vozes ecoam
Uma, duas, três línguas
Dizem palavras iguais
Que se perdem nos ouvidos
E se repetem
Uma e outra vez

A história é a mesma
Sempre, a cada voz
Enquanto houver ouvidos
Ela será contada
E as mesmas lágrimas caem
Por olhos azuis
Verdes e castanhos

O silêncio é proibido
Antes a realidade crua
Que a frieza cortante da memória
Antes ouvir o que aconteceu
Que pensar, na quietude,
No que irá acontecer
Amanhã, e depois, e depois

Como fantasmas com cor
Cruzam os corredores
Não têm que fazer
Não têm o que mais dizer
Na urgência de algo que ocupe
Enche a cabeça errante
Afaste a consciência

Conversas murmuradas
Há palavras que não se pode ouvir
Peso martirizante da verdade
E então desespero de causa
Algo, não importa o quê
Não ajuda a esquecer
Mas ajuda a não pensar

Receio pelo amanhã
Certeza de muitas lágrimas
Terror que enche o coração
Saber que não será sonho
Morte à esperança
De acordar de um pesadelo
É real, dolorosamente real

Nesta casa cheia
Não é menor a saudade
Não é menor a solidão
Nesse abraço apertado
Não são menos as lágrimas
Por vê-las nos outros olhos
É somente maior o amor

Raquel Neves

Colorir Memórias


Colorir Memórias

Não vou colorir memórias
Pintá-las da cor que não são
Tornar o preto dourado
E apagar a desilusão

Engano de alma
Cai como dominó
Olhar de mentira
Espelho da verdade
Segredo de voz calada
Luzes de fachada

Risos sem graça
Cortam nó na garganta
Palavras tão pensadas
Que no final não valem nada
Correm todos os ouvidos
Deixam esses olhos esquecidos

Não vou colorir memórias
Não foi como devia ser
O preto era preto
Não viu quem não queria ver

Cansada vida
Casada por obrigação
De amor queimado
Sob as labaredas do tempo
Por coração fiel
Por recordações de papel

Branca rosa murcha
Gesto sem significado
Estar por estar
Dançar por dançar
E corpo que grita pára
Ignorância de luz clara

Não vou colorir memórias
Acabaram-se as tintas
Noite a preto e branco
Espero que tu o sintas

Gritar: vê-me
Gritar: ouve-me
Gritar: eu continuo aqui, fala comigo, olha para mim!

Não vou colorir memórias
Mente que mente
Olhos pesados que não vêm cores
Alma que sente
E esconde...

E esconde...
Colorindo memórias

Raquel Neves